sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Data Trash

Data Trash é um livro que investiga o fetichismo por trás da realidade virtual. O que leva um casal de adolescentes a postarem para o mundo virtual cenas de sexo no TwitCam? O que leva a uma mulher traída a postar o knockout dado na amante do marido no YouTube? O que leva as pessoas a consumirem tecnologia? Entre outras barbaridades comuns no mundo virtual, o que está por trás de atos como esses é o desejo de virtualização, aquilo que sustenta a cultura digital.

Data Trash é um livro de teoria crítica sobre a cultura digital que segue a linha nietzschiana de pensamento. Aqui, Nietzsche tem um net book e um modem. Nietzsche pensava que o ideal ascético retirava o homem do mundo em que vive, negando a vida em prol de algo que nem se sabe se existe como a vida eterna fora do mundo. Na verdade, o ideal ascético é uma das utilidades da vontade de potência. Se não podemos realizar os nossos desejos aqui nesse mundo trágico que ao mesmo tempo nos dá prazer e dor, então projetamos a existência de um mundo além através da vontade de potência, vivemos a ascese moral nesse mundo negando todos os prazeres da carne. Matando-nos, fazemos nossas malas e nos mudamos para o mundo imaginário do além-vida. O mesmo acontece na era digital em Data Trash. A vontade de potência aqui é isomorfa ao desejo de virtualização.

A frase da capa nos diz: “a cheirar as flores virtuais e a contar os mortos por atropelamento da supervia digital”. Os mortos são aqueles que se matam em vida para viver o ideal ascético proporcionado pela realidade virtual. A carne dos mortos, o que tem de real, é aquilo que faz o asfalto do caminho que leva a todos para dentro da realidade virtual, o paraíso em que os histéricos partidários da experiência telemática nunca querem sair. O mundo virtual é uma espécie de mundo inexistente, produto de um emaranhado de fibra ótica e impulsos elétricos. O mundo virtual está devidamente armazenado em bancos de dados espalhados pelo mundo. O mundo digital progride no estado da arte de designers, computação e de efeitos psicológicos feitos para nos determos cada vez mais dentro dessa realidade.

O papel do mundo virtual é proporcionar uma experiência, a experiência telemática do corpo, um corpo sem corpo que pode realizar tudo o que quiser no mundo virtual. Lá a pessoa pode ter prazeres que nunca teria na realidade, pode ter milhares de amigos que nunca irá conhecer na vida real. Sexo sem contato... Redes de amigos... Pseudônimos... Plataforma Moodle... Wikipedia... Na verdade, a pessoa pode morrer em vida, desde que continuem vivas as suas experiências do corpo telemático. A realidade virtual é o software. O nosso corpo, a nossa vida comum, é o hardware. Curiosamente, o software nega a existência do hardware nesse caso, matando-o metaforicamente.

Assim como o padre asceta, o tecnocrata digital é o responsável por nos determos dentro do mundo digital. Existem dois tipos de tecnocratas digitais. Os visionários que fazem o prospecto daquilo “que podem ganhar” com a realidade virtual de modo a nos determos cada vez mais dentro dessa realidade em prol de “um sistema operacional amigável” ou de uma rede social qualquer e os cientistas que criam os mecanismos para a sustentação de toda a realidade virtual, são aqueles que fazem a manutenção da supervia digital. Bill Gates, Steve Jobs, todos vendem uma ideologia, a tecnotopia: compre o novo Windows, o novo pacote Office, o novo Mac Book ou o iPhone. Ou compre ou não terá acesso à realidade virtual. Os tecnogratas detêm a ideologia: a tecnotopia.

Os tecnocratas são os detentores do poder hoje porque hoje tudo é informação. A informação está armazenada em algum data wirehouse da Sun Micro Systems, ou em algum Mac Book, ou foi processada no pacote Office ou manipulada por um banco de dados criado por algum pacote de desenvolvimento da Embarcadero Technologies, etc. Deter o conhecimento tecnológico para o lucro? Não. Porque dinheiro é apenas mais um bit num campo de banco de dados.

A supervia digital é como se fosse uma estrada. Tomamos uma estrada porque estamos interessados em ir para algum lugar, o mesmo acontecendo com quem entra na supervia digital. O endereço é a realidade virtual que não está em lugar nenhum, é apenas produto de um circuito elétrico comandado pelo tecnocrata. Aqueles que entram na supervia digital pagam o pedágio ao tecnocrata, são atropelados e mortos, da sua carne é feito o asfalto que leva à realidade virtual. Tomamos o rumo da realidade virtual pela supervia digital e nesse momento, negamos a nossa existência enquanto seres reais e podemos ser o que quisermos dentro do mundo digital. Por exemplo, o pedófilo pode ser a criança mais tenra. Lá, o pedófilo mata a sua realidade de um adulto traumatizado e renasce dentro da experiência do corpo telemático da criança sem traumas. Tudo devidamente sustentado pelo desejo de virtualização, pela experiência telemática, pela tecnotopia.

A tecnotopia vende a idéia de que existe uma grande comunidade virtual onde todos se comunicam não importa onde estejam. Nessa comunidade virtual, existem várias possibilidades de interações sociais virtuais. Há comunidades de desenvolvimento virtuais, etc. O que acontece aqui é que a pessoa pode ter várias dessas experiências virtuais, mas pode ser que na realidade da pessoa seja totalmente antissocial. Portanto, a tecnotopia vende a possibilidade de alguém ser algo que não condiz com a sua realidade, e, portanto, não muda em nada a sua realidade. A tecnotopia transforma as pessoas em esquizóides, vivem na borda de um mundo irreal e de um mundo real que estão a negar a todo momento. E pagam ao tecnocrata para isso.

A tecnotopia é contraditória. Tudo resulta em poder para o tecnocrata enquanto que alguém tem uma experiência telemática ilusória. Por trás da tecnotopia estão os ansiosos pela experiência telemática que não aceitam nenhum tipo de crítica, ao mesmo tempo em que compram todas as idéias vindas dos tecnocratas que sustentam a realidade virtual. A idéia é adaptar-se para a realidade virtual e tornar-se um consumidor ávido dessa realidade. Morre-se numa supervia digital que não existe, seduzido por uma elite que detém a informação.

Tudo que é real degrada-se perante a tecnotopia. Uma vez dentro das experiências telemáticas proporcionadas pela realidade virtual, não há mais sentido em realizar os desejos sexuais mais infantis no mundo real. Tudo está a um clique. Tudo é infantilizado para sermos pegos pelos desejos mais infantis.

Não há, para a tecnotopia, fronteiras internacionais. A tecnotopia instalou a economia virtual, o capitalismo a toda a parte, o “capitalismo da Nintendo” em que os mecanismos perversos do capitalismo real são mapeados em sistemas capitalistas irreais do mundo virtual. Pague com o seu cartão Visa para ter acesso à determinada informação ou realização do desejo ou não entrará na comunidade. Tudo roda sobre o software do capitalismo virtual. Uma vez sobre o capitalismo virtual, nenhum valor cultural é mantido, tudo é recombinado, implementado e criptografado. Análises mais profundas sobre a economia virtual podem ser encontradas no livro.

O objetivo tecnotopia é seduzir. Esse processo ocorre pelas imagens. As imagens não possuem um valor artístico nesse caso. Elas apenas são propagandas, para nos tomar por aspectos emocionais. Cada imagem é um link que nos leva para dentro da realidade virtual. Qualquer coisa que venha a ser representada é liguidificada em códigos, em rotinas de programação úteis para nos direcionar ao caminho do pedágio do tecnocrata.

O livro termina com uma reflexão sobre história e a realidade virtual. A história é um arquivo de dados virtual onde estão contidos os que foram seduzidos pela experiência telemática. Nesse caso, a história é uma grande experiência telemática. O corpo é capaz de ser recombinado através de códigos dentro dessa história, recortado, copiado e colado. Na realidade, todos estão mortos (metaforicamente). Porém, na realidade virtual, todos podem estar vivos. Tudo acontece como se fosse na atualidade.

No arquivo da história virtual, não há tempo, já que o que está acontecendo na realidade virtual pode ser reprogramado e recombinado infinitas vezes para acontecer de novo e do modo como se quer que aconteça. Isso porque uma história virtual nunca existiu, assim como uma realidade virtual nunca existiu. Porém, o desenvolvimento das tecnologias e o poder sedutor da tecnotopia geram um “fim da história” expresso numa grande realidade virtual atemporal, reprogramável pelo tecnocrata.

Claro, isso é apenas um cenário filosófico, mas que nos chama a atenção para lançarmos um olhar crítico para o que está acontecendo à nossa volta em relação às barbaridades on-line que reverberam em nosso mundo real. Data Trash é uma leitura obrigatória para filósofos, comunicadores e educadores ou para qualquer um que lida com as tecnologias contemporâneas.

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